domingo, 16 de junho de 2013

Salvação restitui dignidade aos defraudados

Antonio Carlos Ribeiro

O texto bíblico de Lucas 19.1-10, indicado para hoje nos traz a conhecida história de Zaqueu, relato que só aparece no Evangelho de Lucas, um cristão de origem grega, culto e que dirige seus escritos - o evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos – escritos em torno do ano 80 da nossa era para o público não judeu, identificado na dedicação a Theophilos (amigo de Deus), desvinculando-o de uma só etnia. Ele é a prova de que o evangelho ultrapassa limites geográficos, políticos, econômicos, sociais, étnicos e culturais. O cristianismo já nasceu universal e marcado pela diversidade.


Na parte do evangelho em que ele se refere à atuação de Jesus em Jerusalém (cap. 19-21), surge o relato sobre Zaqueu, da próspera cidade de Jericó, usada pelo rei Herodes como sua capital de inverno, que tinha um centro de coleta de impostos. Quem exercia essa tarefa eram os publicanos – fiscais da Receita, que cobravam o imposto de Renda - contratados pelo governo romano, sob a direção deste Zaqueu. Ele precisava entregar uma quantia determinada ao poder romano, mas arrecadava muito alem do contratado. Portanto, as sobras tinham outro destino. E consequências: ele era odiado, desprezado e marginalizado pelo povo.

E porque um homem assim quer ver Jesus? Provavelmente se estivéssemos entre os contemporâneos de Jesus, engrossaríamos o coro dos murmuradores: Jesus é descuidado nas suas relações, ele conversa com uma samaritana no poço, chama um publicano para ser seu seguidor, tem entre os discípulos dois zelotes – Judas e Pedro – do grupo que combatia as forças militares romanas, aceita conversar com Nicodemus, membro do Sinédrio. Devia cuidar melhor do seu ministério. Na verdade, isso era seu ministério: encontrar pessoas. Não negava atenção, ouvia tudo e dizia as palavras certas. Ao saber disso, Zaqueu pensou em chamá-lo para uma conversa.

Zaqueu era rico, tinha autoridade, pagava as cotas a Roma e estava de bem com o poder, mas vivia longe de Deus, experimentava o estigma da exploração – as marcas da corrupção e desconfiança criam um ambiente hostil – que abalavam sua auto-estima. Por mais que se justificasse, a desconfiança e a rejeição da população deixavam marcas. E então veio o dia em que Jesus passaria por Jericó. E ele disse: essa pode ser a oportunidade.

Jesus entra em Jericó e avista Zaqueu agarrado aos galhos de um sicômoro, uma árvore que dá um fruto como figo, de qualidade inferior e consumido pelas classes pobres. Zaqueu se arriscou a passar vergonha por ter subido no sicômoro para compensar sua baixa estatura. Isso o tornou visível a Jesus, que conhecia sua fama e por isso toma a iniciativa de ‘se convidar’ para ir na casa de Zaqueu. Desafiou-o a abrir as portas da casa. Ele não esperava por isso, mas lhe causou um tal impacto emocional que ele saltou da árvore e levou Jesus à sua casa. De imediato começaram os murmúrios, mas Jesus sabia se colocar, dar suas razões e questionar a lógica excludente.

Vejam a experiência de Zaqueu. Na sua própria casa ele se sentiu acolhido por Jesus – embora ele é quem devesse acolher – e aquela presença interpela, mesmo sendo um rabi nômade e pobre, e sem acusar, sem lhe dizer o que as pessoas diziam dele, sem confrontá-lo com a moral codificada pelo Templo e sem desacatá-lo, provoca um impacto que ele nunca tinha vivido. O frio cobrador de impostos que corresponde à lógica do poder imperial, sem qualquer piedade com os pobres, desaba. A presença de Jesus o confronta, percebe o círculo do poder e opera um momento de salvação.

A salvação incide sempre sobre os imperativos da nossa vida. O que é mais importante? Em torno do que gira minha existência? Qual o valor das pessoas neste jogo? Ao ser testemunha da condição humana, a presença de Jesus e a mensagem do Reino de Deus que ele anuncia provocam uma hecatombe emocional. Uma consciência profunda surge de dentro de Zaqueu? E aí a salvação se efetiva!

A salvação não é um preceito moral, mas uma força que sacode nossos alicerces, testa nossas convicções, exige de nós alguma reação. Provoca uma revolução de valores, esfarela as certezas de anos e é definitiva para mudar nossas mentiras em verdades, nossos equívocos em postulados, nossa moral contida em parâmetro de julgamento dos outros. E só é salvação quando suporta nossas decisões posteriores, restitui valores que abandonamos para assegurar posições. Numa palavra: alterou o conjunto da vida de Zaqueu!

E qual o sinal mais visível da salvação nesse ato? O arrependimento, a confissão e a reparação. Quando Jesus o fez defrontar-se consigo mesmo, ele deixou de se ver como as demais pessoas dos círculos de poder, mando e influência o viam. Sua vida passou diante dos seus olhos, suas ações injustas, sua conduta sem princípios e a vergonha de olhar o rosto das vítimas. Isso, só a salvação produz!

Arrependimento/confissão/reparação viram compromisso na boca de Zaqueu. Ele quer restituir de forma quadruplicada o que defraudou (exorbitou, agiu sem medidas, desprezou o direito). A lei judaica mandava restituir e acrescentar um quinto do valor do bem roubado ou destruído. Já restituição quadruplicada era uma sentença para ladrões, que roubaram do que é público, gerando impacto social e afetando os mais pobres. Jesus percebeu a sinceridade de Zaqueu – suportou o teste pecuniário, se dispôs a restituir – e por isso estendeu-lhe seu perdão.

A expressão ‘hoje entrou a salvação nesta casa, pois também este homem é descendente de Abraão’ (v. 9) assegura que pecado tem remissão. Remorso é olhar para o passado com uma mágoa inútil, arrependimento/confissão/ reparação é olhar para o futuro com esperança. Porque só a esperança restitui a dignidade a quem foi defraudado e também a quem defraudou e se dispõe a reparar os erros. Por isso, até Zaqueu pode ser salvo. A decisão de não viver no sótão modorrento das culpas e circular nos demais espaços da casa. Significa seguir Jesus de Nazaré.

O evangelho abre caminhos onde só há muros, dá segundas chances e propicia a dignidade a vítimas e algozes, ao possibilitar que as pessoas se reconstruam por dentro, a partir da sua força. Acertou Lutero ao dizer Christo autem praesente omnia superabilia (Se Cristo está presente, tudo é superável). Seja essa a mensagem a dizer a Zaqueus de todos os tempos.

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