sexta-feira, 7 de junho de 2013

Governo – entre a saúde e a religião

Antonio Carlos Ribeiro

A decisão do governo federal de submeter programas da área de saúde às pressões de grupos religiosos evangélicos, fundamentalistas e conservadores começa a comprometer sua atuação. As evidências surgiram com a repercussão da demissão do diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, o médico infectologista Dirceu Bartolomeu Greco, entrevistado em Globo (07/06/2013). Os evangélicos propuseram uma campanha de oração para substituir procedimentos médicos? Vão apoiar campanhas de apoio à saúde pública? Ou oferecerão os templos para atendimentos gratuitos à população carentes?


A suspeita surge da fragilidade que o governo demonstra diante da pressão de um grupo religioso – diante dos demais grupos que jamais tiveram essa ousadia de barrar programas de saúde com argumentos morais – num gesto tido coimo imoral pelas demais correntes religiosas. Os adventistas propuseram acabar com bancos de sangue? Se não, é mais complexo: o governo não sabe que administra um Estado que é laico há 122 anos. Ou pior, não assume plenamente as prerrogativas de defesa do Estado. Ou dramático, submete a laicidade a apenas um grupo religioso.

Se a demissão de um infectologista resulta da pressão desse grupo que age usando as estruturas políticas do Estado, significa que o governo sucumbiu por não usar a autoridade do Estado para afastar as pressões políticas, sob o disfarce de defesa da religião. Se ficou envolvido na armadilha por causa do poder de voto no Congresso Nacional, tornou-se refém da referida corrente, piorou, sobretudo frente aos sinais de resistência das demais igrejas e religiões. Se o fato está condicionado a apoio eleitoral, pode gerar perda da confiabilidade. E é mais grave.

O racha com a sociedade civil se agravou quando os médicos Ruy Burgos Filho e Eduardo Barbosa, diretores adjuntos do Departamento de DST e Aids também pediram demissão. As razões são eticamente claras. Se foram convidados a autorizar setores importantes de saúde pública por sua formação, competência e experiência profissional – e por trabalharem num Estado laico – mas se a terceira campanha de saúde pública é paralisada apenas porque o grupo mostrar força política, perdeu o valor. Se as razões fossem teológicas ou morais os temas poderiam ser submetidos ao debate público! Mas, a julgar pelo discurso do grupo, faltariam argumentos teológicos.

O raciocínio do médico demitido é eticamente correto. “O papel que o gestor de saúde tem é separar o que é saúde, do ponto de vista lato, do que é decisão individual em relação à religião. São situações completamente separadas”. Isso implica também as consequências em termos de políticas públicas de saúde, que não serão cobradas dos referidos líderes religiosos, mas pesarão na conta da avaliação do governo federal.

O ato de vetar campanhas educativas de prevenção da Aids representam um ‘risco’ ao programa de combate à doença. E isso não é abstrato, como uma pregação religiosa de perfil fundamentalista e instrumentalizada pela mídia de oposição, ou pelos programas religiosos na mídia – sem qualquer forma de controle de qualidade, já que também nesta área o governo sustenta a grande mídia com publicidade, fugindo da tarefa de regulamentação de sua atuação – sempre perdendo, sem se afirmar e deixando apenas expectativas frustradas.

Greco mencionou os três vetos do ministro Alexandre Padilha “em um ano e meio” que motivaram sua demissão do cargo. No primeiro, proibiu a veiculação de imagens de uma relação entre dois homens, enfatizando a necessidade de usar preservativos. No segundo, mandou recolher material educativo com histórias em quadrinhos sobre situações de homofobia e sexualidade, enviados às regiões Norte e Nordeste. E, agora, determinou a retirada da mensagem das prostitutas. A população seguiu exposta aos riscos. As razões, religiosas.

Ao ser demitido, o diretor da unidade de referência no combate à doença, desde agosto de 2010, não foi penalizado, já que retoma o cargo de professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Mas os riscos das decisões políticas permanecem, especialmente para públicos mais vulneráveis, como homens jovens, gays e prostitutas. Negar importância às causas humanas inabilita qualquer grupo ao anúncio da salvação!

Como a maior parte dos profissionais da área de saúde e com formação em ciências humanas, Greco afirma “vi muito progresso, mas ele continua muito dispare, com muitas dificuldades para enfrentar diversidades. O ministério não deixa de ser completamente isento disso. O departamento de Aids sempre foi vanguarda, com capacidade de discutir sexualidade, mortalidade, preconceito e estigma. Toda vez que ocorria uma crise, eu dizia: o que estamos discutindo não é mais religião, é luta de poder”.

Sobre a frase que provocou a ira voraz, a articulação e a pressão de grupos – três atitudes que nos Evangelhos estão associadas a partidos político-religiosos como fariseus e saduceus, e nunca a Jesus – são as que grupos evangélicos assumem ao ambicionar o poder, ao se associar com as bancadas ruralistas e ‘da bala, gesto político que pode explicar o distanciamento do evangelho que os impede de compreender que ‘os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no Reino dos Céus’ (Mateus 21.31), como indicou Jesus.

Greco chegou a poupar Padilha, sem ceder à sedução do jornal conservador, dizendo que ‘o ministro não tem papel conservador nesse processo’, embora não poupe os centros de poder político que se omitem: ‘Onde estão essas forças? Como as decisões são tomadas nesse país?’ Se é porque as campanhas não passaram pela assessoria de comunicação, pautada pela mídia e preocupada apenas com a imagem pública, pode ter sido um equívoco.

Uma alternativa improvável é que o governo federal tenha terceirizado o serviço público de saúde ao curandeirsmo das igrejas de lideranças midiáticas. Será que casos de doenças sexualmente transmissíveis, mortes por aborto irregular e até a onda de assassinatos de homossexuais, deixarão de ser responsabilidade do Estado? Já que o crime não parece um problema moral para estas igrejas. A população será encaminhada aos templos a partir de agora? Se nem no Estado Pluriconfessional isso seria possível, como será possível no Estado brasileira, que é Laico desde 1891?

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