sábado, 21 de julho de 2012

Fausto – da estética medieval aos dilemas modernos


Antonio Carlos Ribeiro

O filme Fausto (Faust, dir. Alexandr Sokurov, com Johannes Zeiler, Anton Adsinskiy, Isolda Dychauk e Georg Friedrich, Drama, Rússia) retoma os dilemas existenciais de quem arrisca a própria vida, quase sempre para sobreviver, se tornando vítima do enredo afetivo do qual sai como criminoso e sem o amor da amada, em nome de sentimentos legítimos e verdadeiros.


Obra que rendeu o Leão de Ouro de Veneza ao diretor, tem a densidade como a principal característica da narrativa. É uma versão do clássico poema de Johann Wolfgang von Goethe, que viveu de meados do século XVIII às primeiras décadas do século XIX, e descreve o médico que faz um pacto com o diabo e depois luta desesperadamente para assumir os preços de sua opção.

A apropriação e nova narrativa de Sokurov tem no estético um grande valor, e este é codificado pela ótica de Bruno Delbonnel, que dirigiu a fotografia de Harry Potter e o enigma do príncipe e é conhecido pela experimentação que atrai seguidores no cinema contemporâneo. Assim, o pano de fundo do filme é uma Alemanha do século XVIII – vista pela estética medieval, sem nenhum dos avanços próprios daquela época – para dar roupagem ao Fausto de Goethe.

O poema, transformado numa obra monumental dividida em duas partes e feito um marco da literatura ocidental, surge da adaptação da lenda do homem que acumulou os saberes do mundo, mas se desiludiu com o conhecimento de seu tempo, fez um pacto com o demônio Mefistófeles, atendidas necessidades como dinheiro e a mulher amada, em troca de sua alma.

Essa estória ganha, na fotografia de Delbonnel e a direção de Sokurov, um universo de traços absolutamente inconfundíveis – como a necrópsia em que o cadáver tem o rosto coberto e o estômago aberto, de onde órgãos internos caem aos pedaços, junto com a tripa intestinal – no mesmo espaço em que as pessoas mal se lavam para se alimentar. Recusar uma linguagem naturalista força uma nova hermenêutica, pela caracterização dos personagens.

O talento plástico da fotografia, somado aos diálogos da narrativa compõem um quadro em que tudo se dilata, do tempo aos costumes, das anamorfoses às deformações, dos banhos públicos no mesmo espaço de lavagem da roupa, da mulher bem vestida que delira no sepultamento do marido, dando à narrativa uma imagem expressionista.

O Dr. Fausto (Johannes Zeiler) de Sokurov, não tem traços românticos, mas é cínico e utilitarista, disposto a alcançar seu objetivo, passando por cima de qualquer. O personagem provoca uma busca constante de sentido da plateia, faz piadas, se introduz em atos e cerimônias a que não foi convidado, despertando questões, com diálogos longos e linguagem de sentidos múltiplos. Essa estética toca a contemporaneidade.

A narrativa do cineasta russo parece uma explicação do século XX, compondo a tetralogia em que descreve o morticínio em massa, iniciada com Moloch (1999), sobre Hitler, Taurus (2001), sobre Lênin, O Sol (2005), sobre Hirohito, e agora Fausto, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza do ano passado. Esses personagens, refletem o desejo insaciável do personagem por conhecimento e poder, que para ele é a fonte do mal do século XX.

Ao que parece, ele quer descrever Fausto como um personagem central, vindo da aurora da Renascença, que se ergue como prototípico do homem moderno. Parece um esforço quase obsessivo para descrever a ambição humana de controlar a natureza e a história.

O enredo vai deixando pistas que em algum momento ele se afirmará, deixará o processo que o trouxe até àquele caminho e começará um círculo virtuoso de ajuste, naturalidade e humanidade. Mas o quadro avança de forma desesperada, irreversível e sem perspectiva, só efetivando a dimensão do drama para os expectadores com o desfecho fatídico.

O filme dá diversos elementos para entender uma modernidade que reluta em se desligar do ambiente medieval, com sua linguagem religiosa que a tudo amalgama, provê as razões e as consequências, sem faltar com o elemento fatalidade, na lógica explicativa do Sokurov. Para quem gosta da narrativa mitológica e fantástica de Goethe, recomendo assistir.

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