quarta-feira, 14 de março de 2012

Perigo: acintosamente humano!

Antonio Carlos Ribeiro

Marcel Marx é um homem que vive como engraxate nas proximidades do porto e, com o pouco dinheiro que ganha, tenta sustentar sua casa. Este é o pano de fundo em O Porto (La Havre, França/ Finlândia/ Alemanha, drama, 93 min., 2011, com André Wilms , Kati Outinen, Jean-Pierre Darroussin, dirigidos por Aki Kaurismäki). É um retrato sem retoques da França que balança na corda bamba da crise econômica, mais pende entre o lado de Nicolas Sarkozi e Marine Le Pen, da direita, e o outro, do socialista François Hollande.


A estória se passa em Calais, na Normandia, onde um homem que vive com dificuldades e trabalha como engraxate, vê sua rotina mudar. É tomado de assalto por duas situações: a doença súbita da esposa (Kati Outinen) e a chegada de um garoto africano, de uma família de imigrantes do Gabão, num container a bordo de um cargueiro. Nessa hora começam as boas surpresas.

http://www.cineclick.com.br/tvcineclick/index/titulo/o-porto/id/6358/

Os vizinhos fazem parte de uma confraria que se ajuda, se protege, tornam mais suave o drama de serem pobres e se depararem regularmente com essas situações no porto. A mulher que adoece, a dona do boteco de imigrantes, o músico que se reconcilia com a mulher para fazer o show beneficente, a padeira que não deixa faltar o pão! A França de Kaurismäki não é só a Paris deslumbrante, a cultura que exala de todas as formas e os cafés como toque de identidade cultural!

É com esses vizinhos que ele conta, ao resolver esconder o menino, encontrar sua família, despistar o detetive encarregado do caso e organizar o show que pagará a chegada do rapaz a Londres. Nesse ínterim há a visita à cadeia, os rostos de imigrantes das colônias francesas, a rigidez do ambiente e a explicação do avô do menino, que perdeu o filho na transferência para outro presídio.

Em todo esse processo Marx mente para salvar a vida do garoto. Se recusa a entregá-lo às autoridades. Guarda a informação do inspetor, que não tem traços hilários como Cruseau, mas uma seriedade que se deixa perpassar pelo drama de quem foge da fome. É sisudo para responder ao ‘monsieur le préfet’, ao atender o chamado para prender o imigrante e ao contribuir para que o rapaz possa fugir.

Por trás do que o drama não mostra – o destino da família, a prisão do avô e a morte do pai do rapaz – existem cenas cotidianas da intimidade dos moradores desses lugares. O rapaz sempre calado ou em poucas palavras, o risco de vida permanente – de retorno ao ‘inferno’ de onde veio, da prisão com a as marcas da indigência política ou da fuga alucinada, com destino ao fim – e uma qualidade de reflexão sobre o drama dos refugiados.

Kaurismäki consegue fazer comédia a partir da tragédia dos hábitos conservadores, empresta certa leveza aos moradores dessa região da cidade ao adotar a composição estética de Renoir e o estilo humorístico de Jacques Tati. Se vagueamos pelas notícias do discurso de direita na campanha presidencial, nos arrepiamos com a maneira como Marine Le Pen se refere a essa população. Mas se percebemos a humanidade, sob os limites da lei, que surge nesta circunstância, vemos os avanços.

Da história de cumplicidade, surgem amizades mudas, dos que não sabem quando se verão de novo, do favor vital sem prazo de retribuição, da solidariedade de quem sabe o que é viver na clandestinidade. O filme levanta muitas questões para os que vivem na França. Especialmente pelo discurso apaixonado, discricionário e violento da direita.

Em todo o caso, não se pode silenciar sobre a situação para a qual esta comédia aponta: O fato de mostrar que no amor, na solidariedade e na ajuda recíproca está a solução para o ‘mal’ da imigração em busca de sobrevivência, que tornam esse filme um perigo. O de ser ‘acintosamente humano’!

2 comentários:

Fernanda Educação disse...

Considerável análise, caro jornalista! Acintosamente humano, nesse caso, me parece, estratégia de eximir os responsáveis do cuidado com os imigrantes pobres. "O amor basta"? Frase muito poética para aqueles que não comem, bebem, moram e se vestem dignamente.

transcenderapalavra disse...

Acertou, caríssima pedagoga! O diretor, descendente de imigrantes, denuncia a postura governamental, especialmente em época de eleições presidenciais, quando os ilegais viram moeda de barganha e a direita fica agitada! Mostra ainda que, como dizia um bispo católico, 'só os pobres salvam os pobres!'.

Total de visualizações de página